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Quando uma doença morre? A resposta está para além da medicina

29 abr/2021

Em artigo sobre a erradicação da varíola no Brasil, Gilberto Hochman analisa os múltiplos fatores por trás do fim de uma epidemia

Ilustração: Silmara Mansur/iStock

Ilustração mostra capa de uma revista onde se lê "Saúde". Sobre o globo terrestre, uma faixa diz: "A varíola está morta"

Por Karine Rodrigues

Quando e como a Covid-19 vai desaparecer? Eis a pergunta do momento, marcado por uma pandemia que, em pouco mais de um ano, já causou cerca de 3 milhões de mortes e infectou 148 milhões de pessoas. Desenvolvidas em tempo recorde, as vacinas contra o Sars-CoV-2 fizeram o mundo voltar a respirar, mas a virose segue ativa porque o fim da uma doença depende de vários fatores. E nem todos podem ser explicados pela Medicina.

Sem uma campanha de vacinação e de informação coordenada nacionalmente, com mobilização da sociedade, não se avança no controle da doença e, menos ainda, em sua própria eliminação

“O término de uma epidemia é estabelecido não somente em termos da existência de uma vacina, de uma solução terapêutica eficaz, da queda na taxa de contágio, da obtenção da imunidade da população ou da diminuição dos registros de casos e dos óbitos. Isso se dá também pela forma como sociedades percebem a experiência epidêmica no presente, como partilham a memória das epidemias passadas, como compreendem e imaginam que a vida social, por elas interrompida, foi ou será reestabelecida e pelos interesses políticos e econômicos envolvidos nesse término”, destaca o doutor em Ciência Política Gilberto Hochman, em artigo que integra o dossiê sobre Covid-19 da mais recente edição da Revista Brasileira de Sociologia.


    Gilberto Hochman
    Gilberto Hochman. Foto: COC/Fiocruz.

No texto, em que analisa o fim de doenças em contextos locais, tomando como exemplo o Programa de Erradicação da Varíola (1966-1973) no Brasil, o pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) detalha os antecedentes do anúncio oficial do desaparecimento da infecção no país, ocorrido em agosto de 1973, em pleno regime militar. A investigação realizada em fontes primárias e secundárias joga luz sobre as múltiplas dimensões de uma conquista da saúde pública sobre uma doença secular, com letalidade que atingia 30% em sua forma mais grave.

“Esse não é um debate exclusivo de epidemiologistas e médicos. Historiadores e cientistas sociais têm estabelecido, há muito, que doenças e epidemias não são fenômenos estritamente biológicos”, observa Hochman.

Doença viral infecciosa transmitida por vias respiratórias, com registros datados de 3 mil anos atrás e milhares de mortes, ao longo do século 20 a varíola se tornou endêmica no continente americano, com surtos epidêmicos de sua forma mais grave em partes da África e da Ásia. Do ponto de vista biomédico, o fato de os seres humanos serem os únicos hospedeiros da doença, a existência de um só sorotipo e a imunidade permanente conferida pela infecção e pela vacina contribuíram para a seu desaparecimento, anunciado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 8 maio de 1980. Mas outros fatores fazem parte da história da única doença humana intencionalmente erradicada até hoje.

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Constantemente citada pela Revolta da Vacina, quando a obrigatoriedade da imunização foi alvo de disputas e conflitos no Rio de Janeiro, então capital federal, em novembro de 1904, a varíola surgiu nos registros brasileiros há muito mais tempo, no século 16, e seguiu atemorizando a população em sua forma mais grave até 1930, quando a doença passou a prevalecer em sua forma mais branda. Saiu, então, do foco da agenda sanitária até que, em meados de 1960, diante do grande número de casos em países como a Índia e o Brasil, que liderava as estatísticas na região das Américas, a OMS lançou uma campanha global para tentar erradicá-la.

Importância da cooperação nacional e internacional

A iniciativa ofereceria aos países endêmicos a oportunidade de receber recursos humanos e financeiros para o enfrentamento da doença e tentaria evitar a importação de casos para aqueles já livres da varíola. Apesar da Guerra Fria, o que se viu foi um grande movimento de cooperação, que mobilizou recursos financeiros e técnicos para zerar os casos em escala global. Diante da pressão internacional, o Brasil criou a Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), em 1966, aderindo ao movimento mundial levado a cabo pela OMS.

A ausência de coordenação nacional na resposta à Covid-19 e na vacinação contrasta com a coordenação e mobilização da Campanha de Erradicação da Varíola em pleno regime militar

“A campanha foi vista como oportunidade para o regime militar obter recursos internacionais para a saúde pública e apresentar resultados positivos que poderiam ser utilizados na comparação com o governo democrático que derrubara”, escreve Hochman no artigo, acrescentando que o fornecimento de recursos materiais e humanos contava com a participação dos governos norte-americano e canadense, da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS) e do Rotary Internacional.

O que se viu então no Brasil foi uma mobilização invejável aos olhos de hoje. Para erradicar uma doença infecciosa que dizimara milhares de pessoas ao longo de séculos, líderes políticos, professores, militares, profissionais de saúde e religiosos participaram da convocação para garantir a adesão à vacinação. “Festas populares, romarias, encontros religiosos, feiras, manifestações artísticas populares, quartéis, escolas públicas, aeroportos, terminais rodoviários e ferroviários e grandes empresas foram espaços utilizados para a vacinação em massa em horário estendido”, descreve o pesquisador.

Apesar da rígida legislação para garantir a vacinação, com exigência dos certificados para pagamento de salários, matrículas nas escolas e obtenção de documentos públicos, Hochman observa que a resposta da população à vacinação em massa não estava exclusivamente atrelada à ação coercitiva e à propaganda. Seria também decorrência do que o pesquisador denomina “cultura da imunização” no Brasil ao longo do século 20, que ele também aborda em outro artigo, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva. “Num país marcado pela exclusão social, a vacina, fornecida gratuitamente pelo Estado, passou a ser percebida como bem público”, cita.

Ao detalhar a vacinação em massa realizada há 50 anos no país, em plena ditadura militar, Hochman faz uma relação com os dias atuais. “A ausência de coordenação nacional na resposta à Covid-19 e na vacinação contrasta com a coordenação e mobilização da Campanha de Erradicação da Varíola em pleno regime militar”.

Nos traços de Henfil, a pergunta: Pra frente, Brasil?

Se, por um lado, o regime militar investiu pesadamente na imunização da população, por outro, instaurou a censura, proibindo a divulgação de problemas de saúde pública, como a epidemia de meningite meningocócica. Em sua investigação, Hochman encontrou uma voz solitária e firme em meio ao clima ufanista e ao silêncio imposto pela ditadura: charges do cartunista Henfil publicadas no semanário O Pasquim, em 1971, faziam referência à persistência da varíola no país e à propaganda ufanista do governo militar, com slogans como “Pra frente, Brasil” e “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

Charge de Henfil: Personagem espantado lê matéria que diz 'Varíola cede na América mas não no Brasil'. Atrás, outro personagem pula entusiasmado, gritando: 'Brasil! Brasil!'
O Pasquim, n. 92, 8-14/1971. Imagem: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
 

“Foi um belo achado. Uma crítica bem-humorada ao regime militar em seu pior momento. Henfil brincava com a ideia de que o Brasil, campeão do mundo no futebol na Copa de 1970, era campeão na varíola na região das Américas. Um cartunista já consagrado criticando o regime militar, e seus slogans ufanistas: é este o país que vai para frente? Acho que foi uma rara crítica ao governo naquele momento”, avalia o pesquisador.

Ao receber da OMS a certificação da erradicação da varíola no país em 25 de agosto de 1973, o governo brasileiro fez apenas um breve comunicado oficial, que rendeu poucas linhas na imprensa. Como sabiam das incertezas do cenário, que extrapolavam questões biomédicas e epidemiológicas e envolviam críticas e desconfianças das organizações internacionais, os militares queriam manter o assunto à boca pequena, tentando assim minorar os efeitos negativos caso a doença não estivesse, de fato, erradicada.

Fim silencioso da varíola

“O fim de uma epidemia ou de uma doença resulta de um entendimento que envolve múltiplos interesses e atores: governos nacionais e subnacionais, organizações internacionais, cientistas, epidemiologistas, imunologistas, médicos e profissionais de saúde, imprensa e redes sociais, sociedades científicas, empresas e organizações da sociedade civil e pessoas afetadas direta ou indiretamente. É possível reivindicar que a história e as ciências sociais apontam caminhos para a compreensão desses processos no tempo e em contextos específicos”, enfatiza Hochman no artigo.

Segundo ele, o fim de uma doença, de uma epidemia, é contextual. E assim deve ser compreendido, como processo dado no tempo e no espaço.  “Ainda que você tenha o vírus, a vacina, tudo seja o mesmo, o seu desaparecimento é um ato social, político, biológico, cultural”, diz. Perguntado sobre a relação entre o evento investigado e a epidemia de Covid-19, o pesquisador destaca que o processo ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970 nos mostra que, “sem uma campanha de vacinação e de informação coordenada nacionalmente, com mobilização da sociedade, não se avança no controle da doença e, menos ainda, em sua própria eliminação”. Está dada a lição.