Em um dia de inverno em 1941, manifestantes empunhando cartazes com palavras de ordem marchavam em direção ao Congresso argentino, acompanhados pela imprensa com grande interesse. As cenas tensas – com intervenção policial e até mesmo prisões – poderiam ser de qualquer um dos recorrentes atos políticos a que estão acostumadas as ruas da capital Buenos Aires. Não fosse por um detalhe penoso: quem protestava, desta vez, eram doentes e seus familiares. “Queremos a vacina Pueyo”, gritava uma legião de tuberculosos ao se aproximar do parlamento.
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Em um período anterior à descoberta dos antibióticos, uma vacina desenvolvida localmente por Jesús Pueyo era vista, pelos doentes, como uma possível salvação, apesar da forte oposição do establishment médico portenho da época, explica o historiador argentino Diego Armus, professor de história da América Latina da Swarthmore College (EUA), que ministrou a aula inaugural intitulada Quando os pacientes se organizam, protestam e até fazem grevesconjunta, atividade conjunta do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Icict).
“[Era] uma vacina que enfrentava resistência do establishment médico, provavelmente ineficaz, mas procurada por muitos tuberculosos desenganados frente às também ineficazes ofertas da biomedicina oficial”, afirmou. Utilizando o caso da vacina Pueyo, seu objeto de estudo, Armus levantou questionamentos mais amplos sobre alguns desafios da história enquanto campo do conhecimento. Onde estão os doentes na história da saúde e das doenças? Como dar sentido à subjetividades, reações e percepções das pessoas comuns no momento de lidar com suas doenças?
Para tentar responder a essas perguntas, Armus evoca a história de Pedro, um senhor de 90 anos a quem entrevistou enquanto pesquisava a tuberculose. Ele contraíra a doença aos 19 anos, em meados da década de 1930. Diante de um quadro de falta de tratamentos eficazes contra a doença, Pedro peregrinou por instituições da medicina oficial e buscou soluções alternativas: experimentou medicamentos caseiros, passou por hospitais, foi a um sanatório na serra de Córdoba atrás de ar puro e descanso, visitou curandeiros e também se inoculou com a vacina Pueyo.
“Nesse empenho para ter acesso à vacina Pueyo, às vezes de maneira individual e outras participando de greves de doentes, Pedro e outros tuberculosos enfrentaram administradores hospitalares, negociaram com funcionários […] e foram usados por vários jornais e revistas de grande tiragem que lhes permitiam levar suas reivindicações à esfera pública”, disse Armus. “Os doentes faziam suas demandas em termos de direitos individuais que os habilitassem a experimentar uma vacina cujas promessas de cura eram tão incertas como todas as iniciativas terapêuticas oferecidas pela medicina oficial.”
Apesar dos reclames dos pacientes, as instituições médicas mantiveram a resistência à vacina de Pueyo, que dedicava-se à biologia como pesquisador amador desde 1929. Em 1932, ingressou como assistente no laboratório da cátedra de bacteriologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. Ali, trabalhou para produzir sua vacina contra a tuberculose e realizou testes, primeiramente com animais e depois com homens. No entanto, nunca conseguiu obter o reconhecimento oficial e acadêmico que buscava.
Apesar da falta de chancela, a notícia sobre a existência da vacina se espalhou. Pueyo decidiu tornar pública a sua descoberta. Vários jornais e revistas com tiragens massivas facilitaram a transformação da vacina em um assunto público. O pesquisador passou a ser celebrado por parte dos veículos de comunicação locais da época como o “moderno Pasteur argentino”.
“Em nenhum momento esses jornais e revistas associaram a figura de Pueyo a de um curandeiro. Para eles, tratava-se de um pesquisador injustamente ignorado nos circuitos acadêmicos”, explica Armus. O apoio da imprensa e o levante dos doentes em defesa da vacina não impediu, entretanto, que as autoridades a tornassem ilegal, dando início a uma perseguição a Pueyo por exercício ilegal da medicina.
Esses episódios, na avaliação de Armus, evidenciam que tratar os doentes como elementos passivos ante o que dizem ou fazem os médicos é uma “tremenda simplificação da condição humana”. A sua maneira, observa ele, os doentes exercem um protagonismo subordinado que lhes permite transitar por diferentes opções de cuidado com a saúde. Ainda que suas opções tenham sido limitadas, os tuberculosos foram capazes de negociar, confrontar e até mesmo travar batalhas sutis.
“Na maioria das vezes, esse protagonismo foi individual. O mais óbvio consistia em algo que nós também fazemos, que é abandonar o tratamento indicado pelo médico quando não o queremos mais. Com menor frequência, também houve ações e protestos coletivos”, disse.
Armus concluiu ressaltando que a visão dos doentes fornece ao historiador elementos que outros discursos não são capazes de aportar e que, portanto, são importantes na construção de narrativas sobre uma determinada doença na medida em que expõe contradições e disputas. “Ao estudarmos o discurso dos médicos ou o discurso de um jornalista de uma revista sobre um tema da saúde, o que estamos analisando são esses discursos, e não as experiências dos doentes que sofrem de uma doenças ou dos redatores dessa revista”, declarou. “Uma doença é muito mais que um bacilo e também muito mais do que os médicos dizem ou fazem em relação a eles”, concluiu.