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Um panorama sobre os surtos epidêmicos no século 19. É o que oferece o livro No rastro das províncias: as epidemias no Brasil oitocentista, organizado pelos pesquisadores Sebastião Pimentel Franco, da Universidade Federal do Espírito (Ufes), Tânia Salgado Pimenta, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), e André Mota, da Universidade de São Paulo (USP), e lançado pela Editora da Universidade Federal do Espírito Santo (Edufes)
A obra é dividida em 16 capítulos e tem a participação de 25 pesquisadores – alguns do corpo docente da COC/Fiocruz –, outros egressos do seu Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, e de instituições públicas espalhadas pelo país. Os artigos seguem ordem alfabética, de acordo com a região estudada, cobrindo 14 províncias: Amazonas, Bahia, Ceará, Espirito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe.
Novas questões e abordagens na história das doenças
Autora do prefácio de No rastro das províncias: as epidemias no Brasil oitocentista, a professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC Dilene Raimundo do Nascimento enaltece a participação de pesquisadores de diversos estados na coletânea. Em sua avaliação, isso "evidencia que o estágio do conhecimento científico, o contexto político e as medidas de saúde pública concorreram para o enfrentamento das epidemias, mas a concretização das ações ocorreu em cada província segundo sua realidade específica."
Dilene acrescenta que “novas questões e abordagens evidenciam o quão promissor é esse campo de investigação". Entre essas questões, ela aponta a constituição de agendas de saúde pública, a emergência de novas moléstias, as doenças de grupos específicos e a relação médico-paciente. Dilene destaca ainda a abordagem no que diz respeito à vinculação da doença ao complexo do universo da cultura e da sociedade.
O primeiro capítulo é intitulado Notícias sobre as epidemias no Amazonas: as intermitências de um processo inacabado na floresta, escrito pelo historiador James Roberto Silva, que discute as constantes preocupações em torno da saúde da população. Ele aborda o tema a partir da constituição de instituições política e cientificamente voltadas ao problema, e do novo status político do Amazonas, elevado à província em 1850.
Aedes aegypti, ou "odioso egipcio"
O capítulo Males antigos, dilemas semelhantes? Peripécias do "odioso egipcio" na Bahia, da historiadora Christiane Maria Cruz de Souza, aborda as epidemias de dengue e febre amarela. As doenças são causadas pelo mosquito Aedes aegypti, ou "odioso egipcio", também responsável pela zika e chikungunya, doenças da época nossa época.
Outra província nordestina com espaço na obra é o Ceará. Em Asquerosa enfermidade: cólera no Ceará, a historiadora Mayara de Almeida Lemos aborda os vários atores mobilizados para enfrentar a doença. Ela pesquisou a criação das redes de ajuda social, através da criação de comissões de socorro, com distribuição de alimentos e medicamentos. São indicados ainda problemas como aumento de preços de mantimentos e os desvios do material fornecido pelo governo da província.
O capítulo escrito pelo historiador Sebastião Pimentel Franco, os médicos André Fraga Lopes e Luiz Felipe Sias Franco, intitulado Flagelos da justiça de Deus: a febre amarela e o cólera no Espírito Santo, abrange um período de 1849 a 1855, quando as duas doenças grassaram a região. Eles levantaram dados sobre aspectos econômico, político e cultural da província, através de notícias do jornal Correio da Victoria e de relatórios oficiais do governo local.
Sebastião Pimentel Franco e André Luis Lima Nogueira assinam o estudo Entre práticas e curas: as polivalentes formas de se enfrentar a epidemia de cólera no Espírito Santo. Segundo a pesquisa dos historiadores, o jornal Correio da Victoria, que tinha posicionamento conservador e oficial, veiculava notícias, conselhos, receitas e anúncios de medicamentos para a doença. O estudo evidencia confronto entre diferentes saberes médicos oficiais e tratamentos populares no enfrentamento da cólera em território capixaba.
Sobre a província de Goiás, escrevem os historiadores Cristina de Cássia P. Moraes, Maria Lemke e Thiago Cancelier Dias. O trio assina o capítulo Fomos aqui acometidos por três flagelos: a varíola, o morbo e o cólera, um ensaio sobre as epidemias nos Guayazes, no qual é abordado o tema sobre as precárias condições da saúde no período imperial. De acordo com os autores, as enfermidades em Goiás têm sido pouco estudadas, despertando o interesse dos historiadores por elas, apenas recentemente.
As historiadoras Ana Carolina Rezende Fonseca e Anny Jackeline Torres Silveira assinam o capítulo dedicado à primeira epidemia de cólera no Brasil, registrada no século 19. Uma breve história da epidemia de cólera na província de Minas Gerais discute os impactos da doença na sociedade mineira, bem como as reações das autoridades públicos diante do problema e suas consequências.
Varíola em diferentes contextos
Belém e a varíola nos tempos da Belle Époque é assinado por Jairo de Jesus Nascimento da Silva, que se debruçou sobre a doença no Pará. O historiador apresenta a varíola na capital paraense, em pleno momento de riqueza econômica na região por conta da comercialização da borracha, o que ficou conhecido como a Belle Époque.
A varíola e seu combate: vacina e (re)ações populares nos relatórios dos presidentes do Paraná é o capítulo assinado pela historiadora Liane Maria Betucci. Segundo o trabalho, a província não chegou a sofrer com as grandes epidemias, porém a varíola mereceu atenção constante das autoridades e assustou a população. A autora explica como as autoridades implementaram a vacinação na população, assim como as ações contrárias à vacina antivariólica. Algumas notas históricas e literárias sobre tísica e os tísicos no Recife do tempo dos sobrados é o capítulo sobre a tuberculose na capital pernambucana. A historiadora Rozélia Bezerra explica como a doença foi responsável pelo maior número de mortes no período, baseando-se em análise literária e documental neste trabalho.
O capítulo Varíola e vacina na província do Rio de Janeiro é assinado por Tânia Salgado Pimenta, Keith Barbosa e Kaori Kodama. O trio de historiadoras analisa as ações do governo no enfrentamento da doença, incluindo a vacinação da população, os problemas em torno de sua fiscalização por parte dos poderes envolvidos, além da falta de recursos para a execução das medidas sanitárias contra a epidemia.
Em A mortífera peste das bexigas: dramaturgia da epidemia de varíola em São Luis, capítulo escrito pela historiadora Mariza Pinheiro Bezerra, são estudados os efeitos da doença no período de 1854 a 1855, a partir do conceito desenvolvido por Charles E. Rosenberg, que abrange do início ao término da epidemia.
O capítulo Cólera, bexiga, disenteria: epidemias e mortes entre a população escrava e a formação social escravista meridional (Porto Alegre), de Paulo Roberto Staudt Moreira, ataca um tema pouco explorado, segundo o historiador, no que tange à população escravizada. Ele explica que isso acontece, mesmo reconhecendo um crescimento da temática da morte, saúde e doenças no período.
Em Concepções e ações de saúde no século 19 e o tratamento dado às epidemias no Rio Grande do Sul, os historiadores Everton Reis Quevedo e Gláucia Giovana Lixinski de Lima Külzer analisam as ações do estado em torno da saúde. Além de relatórios oficiais, recorrem ao acervo do Museu de História de Medicina do Rio Grande do Sul. O capítulo Os flagelos paulistas do século 19 mostra que só houve real interesse das autoridades em combater epidemias no momento da chegada de novos trabalhadores para a lavoura cafeeira, em São Paulo. O sociólogo Rafael Mantovani e a historiadora Maria Cristina da Costa Marques assinam o artigo.
Sob o signo do cólera: médicos acadêmicos contra a epidemia em Sergipe é o capítulo final do livro. O autor, o professor Amâncio Cardoso, escreve sobre a epidemia de cólera-morbo, que se espalhou por várias províncias do nordeste. Ele apresenta as dificuldades para combater o problema, por vezes causado por discursos e práticas, às vezes divergentes, sobretudo por parte de médicos acadêmicos. Segundo ele, isso levou à “medicalização”, o que reforçou o paradigma da medicina miasmática sobre questões urbanísticas e higiênico-sanitárias.
Serviço
Título: No rastro das províncias: as epidemias no Brasil oitocentista
Organização: Sebastião Pimentel Franco, Tânia Salgado Pimenta e André Mota
Editora Edufes
Páginas: 488