Não fosse pela tuberculose, talvez a arquitetura moderna não tivesse os contornos que a identificam hoje. Ambientes iluminados e assépticos, projetados para deixar circular o ar puro, foram a marca dos sanatórios voltados para o tratamento da tuberculose no fim do século 19, quando a doença era vista como resultado de falta de ventilação, clima desfavorável, sedentarismo, enclausuramento e falta de luz solar.
A conservação desse patrimônio é uma preocupação do Docomomo, organização não-governamental voltada para a documentação e conservação do legado do movimento moderno. Na última reunião bienal da entidade, que aconteceu em Seul, na Coréia do Sul, o pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz Renato Gama-Rosa apresentou um pôster sobre a arquitetura sanatorial portuguesa, tema que estudou em seu pós-doutorado na Universidade de Coimbra.
“Os estudos que foram feitos para se chegar a esses espaços de tratamento de tuberculose contribuíram para a arquitetura moderna como um todo. Essa arquitetura sanatorial prima pela aeração, pelo conforto e pela higiene, tudo que o movimento moderno preconizava. Esses locais tinham de ser o mais puro possível, o mais racional, pois tinham uma função terapêutica, visavam recuperar os pacientes. Então, precisavam ser funcionais e racionais. Tudo isso estava no bojo da arquitetura moderna”, diz Gama-Rosa.
Segundo ele, a preocupação com a salvaguarda desse patrimônio se iniciou na França, onde os sanatórios estavam localizados em áreas muito afastadas dos centros das cidades, em regiões de clima montanhoso e rodeadas de verde. Devido à sua localização e suas características construtivas, alguns desses sanatórios estão sendo hoje aproveitados para abrigar hotéis ou outras instalações turísticas. “Isso aguça os olhares dos grandes empreendedores imobiliários”, afirma o pesquisador. Os novos usos que se dão a esses edifícios, na avaliação de Gama-Rosa, representam ao mesmo tempo uma oportunidade e um desafio para a sua preservação.
Dilema: “congelar” os edifícios ou permitir modificações?
“Há um dilema. Essa transformação deve preservar a arquitetura e congelá-la no tempo, ou deve-se aceitar outro tipo de intervenção que vai descaracterizando essa arquitetura?”, questiona o pesquisador, que se diz contra o “congelamento” desses prédios no formato de museu. “Chega uma hora em que não tem mais museu que seja capaz de absorver isso tudo. Acho que esses sanatórios poderiam continuar sendo ainda estabelecimentos de saúde”, diz.
Esse é a situação de diversos prédios desse tipo no Brasil e em Portugal, que se transformaram em hospitais gerais, como o sanatório da Ilha da Madeira, localizado no Funchal, um dos casos estudados por Gama-Rosa. Segundo ele, o prédio está “praticamente intacto”, embora não haja um grupo designado especificamente para garantir a sua preservação. As varandas mantêm as mesmas características de 70 anos atrás. Nos espaços internos, poucas modificações foram feitas. Uma das poucas alterações foi a retirada do símbolo da tuberculose da fachada, uma vez que o local deixou de ser um sanatório.
“Acho que nunca passou pela cabeça deles a ideia de transformar aquilo em outra coisa. Há uma certa compreensão do que é aquele prédio para eles, então os próprios médicos continuam preservando-o de certa forma”, explica o pesquisador.
No Rio de Janeiro, recentemente um prédio modernista que abrigara um sanatório esteve sob risco de demolição. O plano era pôr abaixo o edifício do Hospital Raphael de Paula Souza, antigo Conjunto Sanatorial de Curicica, para construir instalações novas. Ao saber da proposta, Gama-Rosa iniciou um trabalho para demover as autoridades, a convite da historiadora Dilene Nascimento, também da Casa de Oswaldo Cruz. O movimento surtiu efeito. Hoje, há um processo de tombamento do edifício. “É importante que se consiga isso, porque seria a primeira obra de Sérgio Bernardes, um grande nome da nossa arquitetura, a ser tombada”, explicou o pesquisador.