Foto: Rockefeller Foundation Archives. |
Programa de ancilostomíase da Comissão Rockefeller no sul dos EUA (1909-1914).
Por Karine Rodrigues
Em 2014, uma estratégia traçada para erradicar a malária na África, por meio da administração de medicamentos em massa, incluía a primaquina. Os tomadores de decisão não sabiam que ela fora usada nas primeiras campanhas de eliminação da doença, entre 1950 e 1960, na mesma região. Essa falta de consciência constitui um risco significativo para a saúde pública: embora uma única dose da droga seja segura para todos, uma segunda dose ao longo da vida pode ser perigosa, e talvez até mortal, para aqueles com deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD), a mais frequente doença genética humana, prevalente em todas as regiões endêmicas de malária.
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O pesquisador James L. A. Webb Jr. |
Professor emérito de História do Colby College, no Maine, Estados Unidos, James L. A. Webb Jr. cita o episódio em artigo publicado no último número da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, editada pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), para ilustrar o quão potencialmente perigoso pode ser estabelecer uma estratégia de combate e tratamento de doenças sem olhar para as intervenções realizadas no passado.
Doutor em História da África, com especialização em história econômica, na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, Webb combinou sua formação histórica com a epidemiologia, uma especialidade da saúde pública que estuda os fatores determinantes, frequência e distribuição de doenças humanas.
Em entrevista à Casa de Oswaldo Cruz, o pesquisador norte-americano destaca a importância da epidemiologia histórica, que busca criar uma base sólida para o processo de tomada de decisão em saúde pública global, a partir da investigação de programas anteriores de controle de doenças. É uma abordagem que promete benefícios para a saúde pública, como evitar o relançamento de uma estratégia que no passado não alcançou as metas definidas; interromper iniciativas que possam produzir resultados indesejados; e sugerir a reconsideração de abordagens que tiveram sucesso no passado.
Atualmente, as ciências da saúde pública são fundamentalmente a-históricas. Não há uma apreciação geral do fato de que o passado epidemiológico pode ser interrogado para diferentes fins de saúde pública. Essa visão é reforçada pela visão de que novos conhecimentos científicos devem ser determinantes no desenvolvimento de políticas.
Autor de seis livros, sendo o mais recente, The guts of the matter: A global history of human waste and infectious intestinal disease, lançado em janeiro deste ano pela Cambridge University Press, e editor das séries de monografias Perspectives on Global Health e Ecology and History, ambas da Ohio University Press, Webb observa que existem inúmeras campanhas de intervenção em doenças que foram adotadas sem uma análise adequada das realizadas anteriormente.
A partir de análises de campanhas de saúde pública do passado – os programas de controle da ancilostomose, de 1909 a 1930, realizados pela Fundação Rockefeller, e os esforços internacionais de interrupção da transmissão do vírus Ebola durante surtos na África tropical, de 1974 a 2019 –, o pesquisador mostra que a epidemiologia histórica pode sugerir novas abordagens para futuros programas de controle de doenças.
A epidemiologia histórica, acrescenta Webb, tem uma abordagem multidisciplinar, que integra ciências biológicas e históricas para elaborar perspectivas úteis para historiadores e gestores no campo da saúde pública global. No entanto, segundo o pesquisador, a academia não incentiva, atualmente, essa interdisciplinaridade:
“Atualmente, as ciências da saúde pública são fundamentalmente a-históricas. Não há uma apreciação geral do fato de que o passado epidemiológico pode ser interrogado para diferentes fins de saúde pública”. O desafio, acrescenta, “é que historiadores e especialistas em saúde pública desenvolvam essas habilidades multidisciplinares e comecem a ensinar e apoiar a pesquisa em epidemiologia histórica nas escolas de saúde pública”.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista e saiba que livro Webb gostaria de escrever sobre o Brasil.
Você se formou em História pela Universidade Johns Hopkins em meados da década de 1970. Depois, direcionou seus estudos para a África e, de lá para cá, contribuiu com estudos em instituições da Europa, América do Norte, Ásia e África. Você resume a sua trajetória se apresentando como um pesquisador de epidemiologia histórica. Para o público amplo, como explicar o que faz um especialista da área?
O pesquisador em epidemiologia histórica investiga esforços do passado no controle de doenças e seus impactos na transmissão de doenças. A abordagem é amplamente integrativa. Envolve a avaliação das evidências biológicas e epidemiológicas, bem como das dimensões social, política, cultural e econômica das intervenções. Seu objetivo é criar uma nova subdisciplina cujos profissionais conduzam pesquisas sobre o registro histórico de intervenções de saúde pública que sejam diretamente relevantes para planejadores e profissionais de saúde pública contemporâneos.
Muitas das pesquisas sobre a história das doenças têm se preocupado com as respostas sociais, políticas e culturais e não consideram explicitamente as importantes questões epidemiológicas. A epidemiologia histórica interroga esta pesquisa histórica em combinação com a literatura médica e de saúde pública contemporânea para explorar as questões epidemiológicas que são importantes para a saúde pública contemporânea e a saúde global.
A pesquisa em epidemiologia histórica normalmente envolve a consulta a arquivos e literaturas médicas e de saúde pública. O objetivo é criar um banco de evidências e conhecimento nas ciências históricas e de saúde pública, para entender o que foi feito no passado, até que ponto foi eficaz e as consequências para a saúde pública.
Quando e em que contexto surgiu a área de epidemiologia histórica e qual a importância dela para a elaboração e a implementação das políticas públicas de saúde?
As raízes da epidemiologia histórica remontam ao século 19, a uma abordagem conhecida como geografia médica, que mapeou as dimensões espaciais da incidência de doenças. No final do século 20, alguns historiadores da medicina começaram a se concentrar na história da saúde pública e nos determinantes sociais das doenças. No início do século 21, a proliferação de iniciativas globais de saúde ressaltou a necessidade de entender mais sobre o que havia sido tentado no passado. A importância da epidemiologia histórica é que ela pode promover a formulação de políticas mais embasadas. Para enfatizar um ponto básico: aqueles que planejam intervenções de saúde pública ou de saúde global devem ser totalmente informados sobre quais intervenções foram realizadas no passado contra os mesmos patógenos, frequentemente nas mesmas regiões, e com que efeito.
Em Epidemiologia histórica e história global da saúde, publicado no mais recente número da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, você fala sobre a importância da epidemiologia histórica para a história da saúde global e exemplifica isso com três campanhas públicas de saúde realizadas em diferentes períodos da história. Em que medida o que foi feito no passado poderia ter ajudado numa melhor tomada de decisão em períodos recentes?
A Fundação Rockefeller lançou um programa de alcance global para reduzir a ancilostomose e melhorar as práticas de disposição de fezes, entre 1909 e 1930. Eles concluíram que os programas de fármacos para eliminação de vermes não conseguiam atingir o objetivo de reduzir a doença, porque aqueles que sofriam de infestações pesadas de vermes voltaram a ser infestados após o tratamento. O caminho confiável a seguir era promover melhores práticas de eliminação de fezes por meio de mensagens de saúde pública.
Os programas contemporâneos para reduzir a carga dos três principais helmintos transmitidos pelo solo (ancilostomídeo, lombriga e tricurídeo) se concentraram em fármacos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) empreendeu programas-piloto de erradicação da malária na África tropical nas décadas de 1950 e 1960 para determinar se havia um protocolo eficaz que pudesse ser seguido. Foi possível reduzir bastante a transmissão da malária, mas não conseguiram eliminá-la. Os inseticidas residuais sintéticos produziram resistência nos vetores anofelinos.
Durante a atual campanha de eliminação da malária, os atores globais de saúde usaram os mesmos inseticidas contra os mesmos vetores anofelinos nas mesmas regiões para o mesmo efeito, sem a consciência de que isso foi tentado anteriormente.
Vários anos atrás, foram desenvolvidos planos para a administração em massa da primaquina na África, sem levar em consideração o fato de que a primaquina havia sido administrada em massa na campanha de meados do século 20. Como as segundas doses de primaquina podem ser perigosas para os portadores da mutação genética G6PD, havia um potencial para consequências médicas deletérias.
O estudo histórico das respostas globais de saúde aos surtos da doença do vírus Ebola na África Tropical, de 1974 a 2019, destaca a importância da participação de antropólogos médicos nas equipes de resposta a epidemias. No entanto, até o momento, houve pouco esforço para integrar os dados do envolvimento da comunidade na modelagem epidemiológica, embora pareça que esses dados sejam extremamente importantes para a previsão precisa e a alocação de recursos. A antropologia médica continua sendo a pobre enteada das equipes de resposta a epidemias. De fato, no decurso do recente surto da doença do vírus Ebola na República Democrática do Congo, uma das falhas identificadas pelas equipes de resposta ao Ebola foi sua incapacidade de comunicar-se efetivamente com as comunidades afetadas pela doença.
Este ano, você lançou o livro The guts of the matter: a global history of human waste and infectious intestinal disease. O que esta obra, em particular, pode nos dizer em relação à tomada de decisão no enfrentamento dessas enfermidades? Soubemos aprender com as decisões tomadas no passado?
The guts of the matter é uma história global que examina a longa experiência humana com os parasitas helmínticos e os patógenos virais, protozoários e bacterianos que causam doenças intestinais infecciosas. Ele foi escrito para apresentar este tópico a estudantes de saúde pública e medicina. Uma lição tirada do livro é que o sucesso da revolução do saneamento foi altamente desigual. Em diferentes configurações sociais, políticas e culturais, várias classes/raças/castas de pessoas não tiveram acesso a saneamento básico e água potável e, de fato, este é um prisma através do qual se compreende a distribuição global contemporânea de doenças infecciosas intestinais. Uma segunda lição é que as melhorias no saneamento devem ser adaptadas às diferentes circunstâncias ecológicas.
Aprender com os erros do passado é quase um bordão, não importa em que continente se esteja. Ainda assim, você avaliou três campanhas de saúde e encontrou erros em estratégias recentes, que poderiam ter sido evitados se o passado tivesse sido considerado. Por qual razão essa avaliação não se deu e não se dá na área de saúde? A dificuldade é encontrar especialistas que se dediquem à epidemiologia histórica?
A epidemiologia histórica requer competências em ciências históricas e de saúde pública, porém um treinamento que integre campos acadêmicos não tem tido um apoio robusto na academia contemporânea. Existem poucos historiadores profundamente familiarizados ou com formação nas ciências da saúde pública e poucos especialistas em saúde pública que estão profundamente familiarizados ou com formação nas ciências históricas.
Atualmente, as ciências da saúde pública são fundamentalmente a-históricas. Não há uma apreciação geral do fato de que o passado epidemiológico pode ser interrogado para diferentes fins de saúde pública. Essa visão é reforçada pelos avanços na tecnologia médica e pela visão de que novos conhecimentos científicos devem ser determinantes no desenvolvimento de políticas.
O desafio que temos pela frente é que historiadores e especialistas em saúde pública desenvolvam essas competências multidisciplinares e comecem a ensinar e apoiar a pesquisa em epidemiologia histórica nas escolas de saúde pública. Discuti essa questão em um pequeno ensaio intitulado The historical epidemiology of global disease challenges na revista científica The Lancet.
Em 2009, você lançou o livro Humanity’s burden: a global history of malaria. Apesar da longa convivência com a doença, ela permanece um problema de saúde pública no Brasil, em particular, e no mundo. O que deixamos de fazer?
Os parasitas da malária que infectam os seres humanos pularam a barreira das espécies dos macacos selvagens. As infecções humanas têm dezenas de milhares de anos. Existem muitas espécies de mosquitos anofelinos que podem hospedar os parasitas, e as ecologias nas quais as diferentes espécies se desenvolvem são altamente variadas. Estudos epidemiológicos locais provaram ser de importância crucial desde os primeiros esforços para o controle da malária.
Em meados do século 20, o poder do recém-descoberto DDT para controlar os mosquitos convenceu os especialistas em saúde pública de que a epidemiologia local não era mais importante. Mais tarde, quando os mosquitos se tornaram resistentes ao DDT, os esforços para controlar a malária diminuíram. No final do século 20 e nos primeiros anos do século 21, a implantação de mosquiteiros tratados com inseticida e a disponibilidade de uma nova geração de medicamentos antimaláricos à base de artemisinina aumentaram a esperança de que a eliminação da malária fosse possível. No entanto, em muitas áreas, principalmente na África Tropical, onde o problema da malária era mais grave, essas novas tecnologias se mostraram insuficientes.
Em muitas regiões, os determinantes sociais da transmissão da malária continuaram a frustrar os esforços de controle. Em muitas áreas da África tropical, por exemplo, os esforços de eliminação da malária foram paralisados.
No Brasil, a intervenção desenfreada do homem no meio ambiente, em especial na Amazônia, tem gerado cenas desalentadoras que correram o mundo e provocaram impactos graves na saúde. Diante de tudo que você já estudou ao longo de sua trajetória, a magnitude do que estamos testemunhando hoje em escala global é sem precedentes?
Os impactos humanos na ecologia global são, sem dúvida, maiores agora do que nunca. Isso é bem estabelecido por estudos em uma variedade de disciplinas científicas. Os impactos na saúde humana são muitos e universais, e muitos deles – como a poluição do ar que respiramos e a epidemia de obesidade – são novos.
Se, no entanto, considerarmos os impactos das doenças infecciosas na saúde, o quadro é um tanto diferente. Houve pandemias mais virulentas e generalizadas no passado, como a peste bubônica na Europa e em todo o continente eurasiático no século 14 e a introdução de doenças afro-euro-asiáticas durante o primeiro ou segundo século de presença europeia nas Américas. Da mesma forma, o impacto da pandemia de influenza de 1918-1919 na saúde global foi muito maior do que a pandemia global contemporânea de Covid-19. No início e meados do século 20, a prevalência e os custos de mortalidade da malária eram muito mais altos do que são hoje.
E ao Brasil, quando você vem? Considerando o que você sabe a respeito de nosso país, que livro gostaria de escrever sobre o país?
Ainda não fui o Brasil. Adoraria visitar o país. Existem tantos tópicos importantes em epidemiologia histórica para explorar. Acho que seria fascinante fazer um estudo histórico do saneamento e dos esforços para controlar as doenças infecciosas intestinais no Brasil e na América do Sul de forma mais ampla.