Fundação Rockefeller boicotou cientistas brasileiros durante a Guerra Fria, aponta historiador da COC
Por Glauber Gonçalves
Em um período em que as condições gerais de vida da população ainda eram pouco levadas em conta quando se discutiam as doenças que afligiam os brasileiros, o parasitologista paulista Samuel Barnsley Pessoa (1898-1976) converteu-se em referência obrigatória dos cursos médicos do País. Ensinou, escreveu e disseminou o que hoje se chama de “determinantes sociais da saúde”. Catedrático de parasitologia médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) entre 1931 e 1955, Samuel Pessoa consagrou-se como expoente em seu campo de atuação no Brasil por conta de suas realizações tanto em pesquisa como na assistência à população rural.
Seu trabalho rendeu-lhe, inclusive, projeção internacional. Entre as instituições que o apoiaram, estava a Fundação Rockefeller. No início dos anos 1920, Pessoa fora bolsista da organização no Instituto de Higiene de São Paulo. Num intervalo de duas décadas, no entanto, de fellow bem-sucedido, referendado por cartas elogiosas escritas pelos homens mais importantes da Fundação Rockefeller, o parasitologista passaria a integrar a relação dos cientistas aos quais a instituição negaria apoio.
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O elemento que fez azedarem as relações de Rockefeller com Pessoa foi a sua pública e notória militância política no Partido Comunista Brasileiro (PCB), aponta o historiador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) Gilberto Hochman, que participou do seminário sobre a trajetória do cientista na USP em setembro. O evento marcou o lançamento do inventário dos arquivos de Samuel Pessoa e sua esposa, Jovina Pessoa, também militante comunista. O conjunto documental foi organizado por meio de parceria entre o Centro de Apoio à Pesquisa em História Sérgio Buarque de Holanda (CAPH) do Departamento de História da universidade paulista e a COC.
O envolvimento claramente político de Samuel Pessoa a partir dos anos 1940 o leva a ser visto com outros olhos por essa mesma Fundação Rockefeller que o celebrara
No seio de uma sociedade extremamente desigual, o PCB agregava intelectuais e cientistas, como Samuel Pessoa, em torno da promessa igualitária do socialismo. “O seu envolvimento claramente político a partir dos anos 1940 o leva a ser visto com outros olhos por essa mesma Fundação Rockefeller que o celebrara”, disse Hochman, que estuda como o anticomunismo se estabeleceu como uma política na Fundação Rockefeller no Brasil durante a Guerra Fria.
Na década de 1950, a fundação se afasta da área da saúde pública, à qual Samuel era ligado, e passa a se interessar pelo fomento da educação médica e nas ciências biomédicas. Nos Estados Unidos, com a ascensão do macarthismo, a Rockefeller e outras fundações filantrópicas que desfrutavam de isenção de impostos começam a sofrer pressão para deixar de financiar elementos comunistas ou considerados antiamericanos.
Numa etapa inicial desse distanciamento, Samuel pessoa ainda manifesta deferência pelo papel desempenhado pela fundação do Brasil. Em uma entrevista concedida em 1945, ele diz que a Rockefeller fizera mais pelas relações Brasil-EUA que a política de boa vizinhança de Franklin Delano Roosevelt, presidente norte-americano entre 1933 e 1945. “Isso mostra que apesar do afastamento, ele tinha respeito pelo papel da Fundação Rockefeller no Brasil”, declarou Hochman.
Um episódio pouco conhecido do período da Guerra Fria, entretanto, foi determinante para que a instituição retirasse seu apoio a Pessoa e passasse a boicotar também todo o grupo de cientistas e alunos ligados a ele. Em 1952, a China e a Coreia do Norte acusaram os Estados Unidos e os Aliados de utilizar armas biológicas durante a Guerra da Coreia, denúncia prontamente negada por Washington.
Fundação Rockefeller desaprova participação de Pessoa em comissão
A tentativa de se formar uma comissão internacional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para averiguar a denúncia foi rechaçada pela União Soviética, que estava ao lado dos chineses e coreanos do norte. Foi então que Frédéric Joliot-Curie, prêmio Nobel de Química em 1935 e membro do Partido Comunista Francês, convidou um seleto grupo de cientistas para ir à China e à Coreia Norte, em nome dos governos desses países, a fim verificar se armas biológicas de fato foram usadas. Ao lado de cientistas comunistas e socialistas de diferentes partes do mundo, Samuel Pessoa integrou a comitiva, juntamente com Jovina, que atuou como intérprete de francês, língua utilizada pelo grupo.
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Em agosto de 1952, um enorme relatório conclui que os Aliados teriam de fato utilizado armas biológicas na Coreia. “Isso muda completamente a relação de Samuel Pessoa com a Fundação Rockefeller, o que tem efeitos para os assistentes em torno dele e seus alunos”, disse Hochman. “Quando ele e Jovina voltam, além de os dois terem sido conduzidos diretamente a prestar depoimento no Deops [Departamento Estadual de Ordem Política e Social] no Rio, foram enxovalhados pela grande imprensa.” O jornal O Globo trazia o episódio na primeira página: “Falou como político e não como cientista”.
As restrições que a Fundação Rockefeller levantou a Samuel Pessoa estão registrados em sua ficha, guardada no arquivo da instituição em Nova York, à qual Hochman teve acesso. Em outubro de 1955, Robert Briggs Watson, diretor do escritório da fundação no Brasil escreveu para seu superior: “Pessoa foi à China com a comissão da guerra bacteriológica, desta forma prostituindo sua indubitável habilidade científica como parasitologista, invalidando-a em nome de suas crenças políticas”. Mais adiante, na ficha, lê-se: “Não estamos interessados em financiar seus alunos, porque eles espalharão ideologia pelas diferentes escolas de medicina ao longo do Brasil”.
Se as conclusões da comissão nunca foram definitivamente compravadas e aceitas, o certo é que a participação de Pessoa no grupo abalou severamente sua relação com a Rockefeller. “Essa até hoje é uma questão polêmica. É claro, pela abertura dos arquivos soviéticos, que [a utilização de armas biológicas] provavelmente não foi verdade numa escala de guerra, mas alguns historiadores acham que é bem plausível que algum tipo de teste tenha sido feito”, diz Hochman. “O que importa é o efeito disso para a trajetória do Samuel Pessoa.
Para o historiador, embora seja insuficiente para explicar as perseguições que se instauram a partir de 1964, o golpe infligido a determinados grupos por conta de seus ideais e de sua militâncias política no Brasil durante a Guerra Fria traz elementos para se pensar os acontecimentos da ditadura civil-militar no Brasil, como as denúncias e os expurgos de cientistas associados ao comunismo na própria Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. "Esta história pregressa de vigilância, perseguição e vetos conformou o golpe 1964“, observou.
Assista ao seminário:
Mesa de abertura
Márcia R. Barros da Silva (CAPH/USP)
Miguel Soares Palmeira (FFLCH/USP)
Júlio César M. de Oliveira (FFLCH/USP)
Paulo Elian (COC/Fiocruz)
A trajetória política e científica de Samuel Pessoa
Coordenação: Márcia R. Barros da Silva (FFLCH/USP)
André Mota (Museu Histórico FMUSP)
Gilberto Hochman (COC/Fiocruz)
Erney Camargo (Instituto Biociências/USP)
Os arquivos de Samuel e Jovina Pessoa
Coordenação: Paulo Elian (COC/Fiocruz)
Ana Maria de Almeida Camargo (FFLCH/USP)
José Francisco Guelfi Campos (UFMG)
Aline Lopes de Lacerda (COC/Fiocruz)