A agenda anticomunista da Fundação Rockefeller no Brasil durante a Guerra Fria, com direito a monitoramento e perseguição de cientistas identificados com o Partido Comunista do Brasil (PCB), e as conexões globais, nacionais e locais coordenadas a partir do escritório da Rockefeller no Rio de Janeiro nos anos 1950 foram a base da apresentação do pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) Gilberto Hochman no último Encontro às Quintas de 2018. O evento promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC foi realizado em 29/11, no Centro de Documentação e História da Saúde (CDHS), em Manguinho, no Rio.
Com estudos na área da saúde global e nas relações entre saúde, democracia e desenvolvimento, o pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz retornou recentemente de uma temporada como professor-visitante na Universidade de Michigan, onde atuou no Center for Latin American & Caribbean Studies. A partir da análise de fontes arquivísticas dos Estados Unidos e do Brasil, Gilberto Hochman debateu a perspectiva de localização da Guerra Fria como um processo ao mesmo tempo global, nacional e local, enfatizando como a filantropia norte-americana participou desse processo, em uma mistura de ciência, ideologia e política a partir de seu escritório no 4o. andar da Av. Franklin Roosevelt 94, no centro do Rio de Janeiro.
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“Eu estou interessado em saber como a dinâmica global da Guerra Fria nos anos 1950 e 1960 teve impacto sobre os programas científicos e de educação médica no Brasil. Pensar de que forma dinâmicas nacionais e locais balizaram programas internacionais de organizações tais como a Fundação Rockefeller, como foi que a Guerra Fria Global se expressou localmente, mesmo nesses programas de organizações internacionais. Entender como elas e esses personagens estavam conectados entre EUA, Brasil e a China”, afirmou Gilberto Hochman no Encontro às Quintas.
Para além de ser uma agência que trabalha no sentido de financiamento da modernização da educação médica, a Rockefeller se torna um ator da Guerra fria, no sentido de contenção ou contra-ataque à presença comunista nas universidades brasileiras.
Para ilustrar a relação entre as dinâmicas globais, nacionais e locais durante a Guerra Fria, Hochman investigou o caso do renomado parasitologista Samuel Barnsley Pessoa, monitorado e perseguido por sua conhecida militância comunista. Catedrático da parasitologia médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) entre 1931 e 1955, e referência mundial na área da saúde pública, Pessoa participou, em 1952, de uma polêmica comissão internacional de cientistas que foi à China e à Coreia para verificar a denúncia de utilização de armas biológicas pelos americanos e seus aliados durante a Guerra da Coreia (1950-1953).
Uma foto sua, acompanhado da esposa, Jovina Álvarez Pessoa, também militante comunista, ao lado de Mao Tsé-Tung, marcaria sua trajetória pessoal e profissional para sempre. “Em agosto de 1952, eles entregam um relatório, acusando formalmente os americanos de terem usado armas biológicas durante a guerra. Isso é explosivo, do ponto de vista da Guerra Fria e das tensões internacionais naquele momento”, explicou o pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz.
Em razão do episódio e da influência de Samuel Pessoa na comunidade científica brasileira, o Departamento de Estado norte-americano em Washington passou a pressionar a direção da Fundação Rockefeller em Nova York, que por sua vez fez chegar ao seu escritório no Rio de Janeiro a proibição do financiamento de “notórios comunistas” na área da saúde. Os desdobramentos dos conflitos internacionais também alteravam o perfil de organizações como a Fundação Rockefeller, que se notabilizara como a principal financiadora internacional de saúde pública internacional desde 1910.
“Isso é assumido pelo escritório da Fundação Rockefeller no Rio de Janeiro. Para além de ser uma agência que trabalha no sentido de financiamento da modernização da educação médica, a Rockefeller se torna um ator da Guerra fria, no sentido de contenção ou contra-ataque à presença comunista nas universidades brasileiras. Quanto a isso os documentos são fartos”, comentou Hochman.
Com a direção de Robert Briggs Watson no escritório da então capital federal brasileira, a Fundação Rockefeller passa a exigir a checagem ideológica de médicos e cientistas, como condição para investimentos e financiamentos. Todo o processo é negociado a partir da conciliação de interesses com instituições nacionais como o Ministério da Educação e a recém-criada Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). É neste contexto, por exemplo, que a Rockefeller age para impedir a ida de Samuel Pessoa para a escola de medicina de Belo Horizonte, em 1956. A medida visava não somente atingi-lo, mas também diminuir a sua influência nas escolas de medicina do Brasil.
“Samuel Pessoa foi bolsista da Fundação Rockefeller no início dos anos 1920. Por isso eles vão considerar a maior traição possível esse personagem ter ido a China e ter participado das acusações contra os Estados Unidos. Está claro, em correspondência da Capes com a Rockefeller, que havia um interesse de esvaziar a influência de Samuel Pessoa nas escolas de medicina do Brasil. Ao final dessas negociações, ele não foi nomeado. Os macroconflitos, como a Guerra da Coreia, também se fizeram presentes aqui”, afirmou Gilberto Hochman.